Repertórios interpretativos sobre o amor: das narrativas culturais às conjugalidades violentas
Conde, Ana
Tese
Tese de doutoramento em Psicologia (área de especialização em Psicologia da Justiça)
No presente estudo, adotando uma perspetiva sociocultural assente nos
pressupostos construcionistas sociais, procuramos analisar e compreender o fenómeno
do amor, mais precisamente, a sua articulação com as práticas relacionais amorosas,
entre as quais, as que se caracterizam pela violência. No percurso teórico que
desenvolvemos, encontramos fundamentos que nos permitem sustentar o argumento de
que o amor e a violência na intimidade são fenómenos intimamente dependentes das
práticas e discursos socioculturais, pelo que defendemos a interligação dos fenómenos e
a adoção de uma perspetiva sociocultural na sua análise.
No que diz respeito à violência na intimidade, procedeu-se à revisão das teorias
e da investigação que integram a dimensão cultural, concluindo-se que há fatores
socioculturais que fornecem racionais e justificações para a violência. No que diz
respeito ao amor, realizamos uma revisão exaustiva das diferentes abordagens teóricas e
estudos sobre o fenómeno, constatando o reconhecimento consensual da existência de
variações culturais na experiência do amor e concluindo que esta é constrangida pelos
padrões culturais vigentes num dado tempo/espaço, incluindo a experiência “violenta”
do fenómeno.
Utilizando uma metodologia qualitativa da análise do discurso e recorrendo ao
conceito de “repertório interpretativo”, procuramos compreender quais as grelhas
interpretativas culturais disponíveis para significar o amor e analisar de que forma essas
grelhas/repertórios são apropriadas e transformadas no discurso e nas práticas dos
diferentes sujeitos. Mais especificamente, de que forma estas grelhas interpretativas
podem influenciar as relações de intimidade e o recurso a práticas violentas ou abusivas.
No primeiro estudo empírico analisámos o discurso dos sujeitos sem historial de
violência e com diferentes backgrounds geracionais (adultos de diferentes faixas etárias
e jovens). Concluiu-se que existe de uma continuidade discursiva transgeracional mas
identificaram-se algumas especificidades geracionais, discutidas à luz do contexto
sociocultural.
No segundo estudo empírico, realizou-se uma análise comparativa entre os
sujeitos com historial de violência e os sujeitos sem historial de violência, tanto da
população juvenil como da população adulta. Além dos aspetos consensuais, discutem se as especificidades que distinguem os sujeitos com historial de violência dos sujeitos
sem historial de violência e, mais especificamente, discutem-se as particularidades que
distinguem o discurso dos jovens.
No terceiro e no quarto estudo empíricos analisou-se o discurso dos agressores e
o discurso das vítimas. No estudo com os agressores, verificou-se que o tema da
conflitualidade/violência é central no seu discurso, havendo uma tentativa de integrar na
sua história a perpetração de violência contra a parceira. Identificam-se diferenças entre
os agressores juvenis e os agressores adultos, bem como diferenças decorrentes da
situação relacional dos sujeitos. No estudo desenvolvido com as vítimas, identificaramse
tentativas de conciliar a experiência da vitimação com a componente amorosa mas,
também, a experiência de perpetração no feminino. Identificaram-se, também,
diferenças entre as vítimas jovens e as adultas, bem como algumas especificidades
decorrentes da situação relacional das mulheres.
Face aos resultados destes dois estudos, são analisados os discursos
socioculturais mais alargados sobre o amor e explorados tópicos de intervenção.
Reflete-se, ainda, sobre a forma como os discursos do amor constrangem,
diferenciadamente, a experiência da vitimação e a experiência da perpetração no
feminino.
Por fim, na conclusão, debatemos as implicações dos resultados a três níveis: (i) o
que traduzem quanto aos processos históricos, sociais e políticos da cultura portuguesa;
(ii) as possibilidades que abrem/fecham enquanto recursos culturais para a construção
do amor e das práticas/formas relacionais (e em que medida podem
constranger/influenciar a vivência de relações violentas, abusivas e assimétricas); e (iii)
pistas para a intervenção, preventiva e remediativa, que fornecem, mas sob uma
perspetiva cultural.
In this study, by adopting a sociocultural perspective based on social
constructionist assumptions, we pursue to analyze and understand the phenomenon of
love, more precisely, its articulation with relational loving practices, including those
that are characterized by violence. In our theoretical approach, we find evidence that
love and violence in intimate relationships are closely dependent of sociocultural
practices and discourses, allowing us to support the interconnection of these phenomena
and the adoption of a sociocultural perspective in its analysis.
With regard to violence in intimate relationships, we provide an overview of the
theoretical knowledge and empirical research generated by the concern over its cultural
dimension, concluding that there are sociocultural factors that sustain and validate
violence. With regard to love, we make a thorough review of the various theoretical
approaches about the phenomenon; as well we describe the empirical research
developed under these approaches. There is a consensual recognition that they are
cultural differences in love experience, and that love experience is constrained by
cultural patterns prevailing in a given time and space, including the "violent" experience
of the phenomenon.
By using the qualitative methodology of discourse analysis, along with the
concept of "interpretative repertoire", we try to understand which cultural interpretive
networks are available to give meaning to love. We analyze how these
networks/repertoires are appropriated and transformed through the discourse and
practices of different subjects. More specifically, we analyze how these interpretative
networks may influence intimate relationships and the recourse to violent or abusive
practices.
In the first empirical study we analyze the discourse of subjects with no history
of violence, from different generational backgrounds (adults from different age groups
and youngsters). We conclude that there is a transgenerational discursive continuity but,
we also identify generational specificities, which are discussed within the sociocultural
context.In the second empirical study, we make a comparative analysis between subjects
with a violent story and subjects without violent story, including both youngsters and
adults. Beside the consensual issues, we discuss the specificities that distinguish
subjects with a violent story and subjects without violent story; and, more precisely, we
discuss the peculiarities that differentiate the youngsters' discourses.
In the third and fourth empirical studies we analyze, specifically and
respectively, the discourses of aggressors and victims. In the study of aggressors, we
realize that conflict/violence is a central issue in their discourse, being an attempt to
integrate the violence against women in their story. We identify differences between
juvenile and adult, along with differences arising from the subjects' relational status.
Considering our results, we discuss the broader sociocultural discourses about love that
legitimizes the use of violence; as well we explore areas of intervention.
In the study with the victims, we identify not only the attempt to conciliate
victimization, but also the experience of female perpetration, with love dimension. We
find differences between young and adult victims, as well as some specificities resulting
from women's relational status. Considering the results, we also discuss the broader
sociocultural discourses about love and we explore topics for intervention. In addition,
we analyze how the discourses about love constrain both the experience of victimization
and of female perpetration.
Finally, in the conclusion, we discuss the implications of the results at three
levels: (i) what they translate regarding historical, social and political processes of
Portuguese culture; (ii) the possibilities they open or close as cultural resources for the
construction of love and relational practices/forms (and to what extent they may
constrain/influence the experience of abusive, violent and asymmetric relationships),
and (iii) the clues they provide for intervention, both preventive and remedial, but in a
cultural perspective.