Vidas raras de mulheres comuns : percursos de vida, significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas
Matos, Raquel
Thesis
Tese doutoramento em psicologia
A dissertação apresentada consiste numa abordagem à criminalidade feminina, especificamente sobre os percursos de vida, significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas. A nível teórico, partimos da exploração dos discursos sociais e científicos sobre a feminilidade e a transgressão, para nos determos em particular sobre as abordagens feministas à criminalidade feminina. A escolha das perspectivas feministas enquanto principal sustentação teórica desta dissertação, deve-se ao facto de a nossa postura face ao objecto de estudo se rever no argumento feminista de que a construção social do género pauta os percursos de vida das mulheres que transgridem, e se reflecte na resposta formal e informal a essas transgressões. A nível metodológico, são igualmente evidentes as influências das abordagens centradas na construção do género.
Recorre-se a diferentes métodos de recolha e análise de dados, mas privilegia-se a
utilização de metodologias qualitativas que possibilitam o acesso às perspectivas
das mulheres ofensoras.
A componente empírica da dissertação compreende a realização de dois estudos. O primeiro tem por objectivo a caracterização socio-demográfica e jurídico-penal da população reclusa feminina, entre os 16 e os 21 anos de idade. Os dados foram recolhidos em diversos estabelecimentos prisionais portugueses através da administração de um questionário à totalidade de mulheres enquadradas nos critérios definidos (N=49). Os resultados obtidos evidenciam a tendência para a agregação das características demográficas e jurídico-penais destas mulheres em três perfis, que se distinguem essencialmente pelo tipo de crime cometido e pelo trajecto percorrido na justiça até ao crime. Os perfis extraídos constituíram o
ponto de partida para a realização do segundo (e principal) estudo empírico, que
consiste numa abordagem aos discursos que as jovens ofensoras constroem sobre os
seus percursos de vida e sobre as significações do crime nesses percursos. Os dados foram recolhidos através da realização de entrevistas qualitativas aprofundadas a
12 jovens reclusas, a partir de um guião de entrevista adaptado da “life-story
interview” de McAdams (2000). Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e analisadas sob os pressupostos da grounded analysis, com recurso ao programa informático NUD*IST 4.0.
A análise dos dados permitiu-nos rejeitar as concepções mais tradicionais de transgressão feminina. Em primeiro lugar, nos percursos desviantes das mulheres
ofensoras tal como elas os constroem discursivamente, são heterogéneas as
significações e os posicionamentos face ao desvio, contrariando-se o argumento da
especificidade dos «crimes tipicamente femininos». Os discursos sobre o crime
incluem também a ideia de agência na opção das mulheres pelo desvio, à qual
estão por vezes subjacentes dimensões de prazer ou de racionalidade. Por outro
lado, as mulheres parecem encontrar novas oportunidades no «mercado do crime»,
onde a sua inclusão é crescente, embora os papéis de género estabelecidos no
âmbito do desvio (e.g., em grupos desviantes mistos) continuem a reflectir os
discursos sociais dominantes. Constatamos ainda que as exigências colocadas à
mulher para que corresponda a um ideal de feminilidade parecem conduzi-la a
formas de desvio que, em função do seu grau de conformidade ao controlo de
género, se aproximam das tipicamente masculinas. Com base nos dados analisados
reafirmamos assim a necessidade de olhar para a transgressão feminina através de
uma lente de género.
This dissertation consists on a theoretical and empirical approach to female
criminality. Particularly, it focuses life trajectories, meanings of crime and the
process of identity construction of young women in prison. In terms of theoretical
framework, we look at social and scientific discourses about femininity and crime,
analysing mainly the feminist perspectives about female deviant behaviour. The
choice of feminist approaches as the main theory underlying our work is related to
the convergence of our own arguments with the feminist assumption that social
construction of gender is crucial on female pathways to deviancy and is reflected
on formal and informal answers to women’s crimes. The research methods used in
the empirical research are also strongly influenced by gender construction
approaches. We used mainly qualitative methodologies valuing the perspectives of
the female protagonists of deviant behaviour.
Two empirical researches were carried out. The aim of the first one
consisted on the demographic and penal characterization of young women in
Portuguese prisons. Data were collected through the administration of a
questionnaire to all women under 21 years of age (N= 49) in prisons all over the
country. Results showed a tendency to aggregate these women in three different
groups according to some of their demographic and penal characteristics (e.g.,
previous contacts in the justice system; type of crime). Fitting in one of these
groups was a criterion used in the sampling process of the second study which
consisted on a qualitative approach to young female offenders’ discourses about
life trajectories and meanings of crime. We adapted the “life-story interview”
proposed by Dan McAdams (2000).to conduct in-depth interviews to 12 young
women. The interviews were tape-recorded, transcribed and later analysed under
the grounded analysis principles using NUD*IST software. Data analysis led us to
reject the traditional concepts of female criminal behaviour. First of all, in the narrative construction of these women’s trajectories emerged diverse meanings of
crime supporting the rejection of the traditional argument of the specificity of
«typical female crimes». Discourses about crime also included the idea of agency in
female options for deviant behaviour. That might be related to the new
opportunities that women seem to find in the «crime market», where female
inclusion is growing, even if gender roles within deviant groups keep reflecting the
dominant social discourses. We also acknowledge that social demands for women to
conform to an ideal of femininity seem to lead them to deviancy, specifically to
what is usually considered «typical male forms of transgression». Based on the
results we reaffirm the need to look at female deviant behaviour through a gender
perspective.